Manhã de domingo. Aqui estou eu, sentado na minha "poltrona do papai", buscando desesperadamente entre as páginas do jornal algo que me catapulte desse marasmo matinal. Minha filha, Ana, conversa ao telefone com sua melhor amiga, Maria Alice:
Escutá-la remeteu-me a um outro tempo. Eu tinha 22 anos, estudava arquitetura, era recém-casado com Malú, minha colega de classe e mãe de Ana.
O dia era quarta-feira, 3 de outubro. Havia terminado uma prova na faculdade e voltava para casa. Malú estava grávida e carente; ela sempre me pedia para chegar cedo.
Porém, no meio do caminho tinha um sebo, tinha um sebo no meio do caminho. O sebo da Dona Aurélia, uma senhora enorme, de pernas inchadas, que sempre me recebia com sorriso aberto e rosto suado.
Decido entrar. Força do hábito. Não tinha um tostão furado. Era estagiário e fazia poucos dias que tinha terminado de pagar a última parcela do enxoval de nosso bebê. Lá estava Dona Aurélia, esbaforida, sentada embaixo do ventilador de teto.
-Pode entrar meu querido. Fique à vontade.
Sorrio. Dou alguns passos por entre as prateleiras e estantes. Olho, olho e não vejo nada. Não quero ver. Passo por Dona Aurélia e me despeço. Ela me segura pelo braço e diz:
Tudo que não podia ouvir. Penso, repenso. Digo que sim. Sim eu quero ver, tocar, folhear. Por que não?
A antologia era um sonho antigo. Desde as aulas de literatura no científico. As aulas da professora Fátima... Perco-me no tempo. Saio de mim. Eu preciso dessa antologia. Ponho a mão no bolso... Dona Aurélia sorri.
Nem titubeei. Fui para a parada do ônibus alegre e satisfeito. Esperei o CAMPO GRANDE numa serenidade impensável há algumas horas. Após uma hora na parada, subo no ônibus.Vou em pé até Cajueiro.Caminho 2 km e chego em casa. Abro a porta, Malú estava sentada no sofá, de camisola rosa, com as mãos postadas sobre sua imensa barriga de 9 meses.Solto um tímido:
Ela estava impassível. Percebi que só no dia seguinte faríamos as pazes. Deixei o livro no centro da sala. Ela fitou o livro, fitou a mim, e impassível permaneceu. Fui para o quarto. Tirei a roupa e fui deixá-las no cesto de roupa suja, na cozinha. Malú estava lendo alguns trechos do livro. Parei para observar. Entre risos, Malú me chama:
Parecia que tudo voltava ao seu estado normal. Gregório de Matos seria minha redenção.
Malú começa a dizer o soneto A MUSA PRAGUEJADORA.
Com um sorriso no rosto contemplo a alegria da minha musa. Ao término do soneto Malú grita, em uníssono com suas gargalhadas:
“Puta que pariu! Se for pra ser assim, não faço essa final nem fudendo!”, alerta minha filha Ana. Agora tudo faz sentido.
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