segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O morto-vivo

Jorge não gosta de almoço de domingo nem de pagar couvert. Jorge gosta de uma série de outras coisas, menos de almoço de domingo e couvert.Jorge passa seus dias tentando enquadrar seu cotidiano nos 3 mandamentos da boa conduta e sucesso, são eles: classe, elegância, glamour e,eventualmente, sabor. Jorge gosta de passar horas alisando seu queixo pontiagudo. Adora decorar os títulos originais de seus filmes prediletos e fingir que é gay. Orgulha-se por não trepar há anos com mulheres (nem com homens). Diverte-se quando consegue esquivar-se de um aperto de mão. Ama tomar conhaque sentado na cadeira de balanço de cerejeira legítima que foi de sua mãe e brincar com a fumaça do cigarro ao mesmo tempo em que assiste a um filme pornô oriental. Jorge tanto gosta de peidar enquanto dá aulas de filosofia da arte, quanto gosta de comer sarapatel com muita farofa no mercado público da Boa Vista. Deleita-se ao preparar macarrão à carbonara para os amigos e sente alguma coisa próxima de orgasmos múltiplos quando cospe no prato que comeu. Jorge gosta de muitas coisas, exceto almoço de domingo e de pagar couvert.
Jorge acha o fino da piada pronta os almoços italianescos -domingo sim, domingo não- na casa do avô paterno. A portuguesada reunida, comendo bacalhau ao alho e óleo, enquanto os primos mais velhos contam vantagem profissional, afetiva, sexual e futebolística uns sobre os outros.As primas mais novas brincando de médico no quarto de hóspedes com os primos mais espertinhos. As tias gordas, peitudas e velhas, refesteladas de tanto comer, empalitam os dentes ao mesmo tempo em que soltam pequenos arrotos.Sabe aqueles que a gente faz de tudo para disfarçar e acaba soprando o bafo quente com cheiro de comida digerida incondicionalmente!?Jorge tinha asco destes arrotos enrustidos. Os tios bigodudos davam um espetáculo à parte. Abrem a braguilha da calça deliberadamente, levantam a camiseta e dão uns tapinhas no bucho cabeludo, em sinal de satisfação. Jorge não concebia tal código. Como alguém troca os 3 mandamentos da boa conduta por uma performance tão rudimentar!???
Quanto ao couvert, não apetecia a Jorge a idéia de ter que pagar para entrar em algum estabelecimento etílico.
- Porra!Já vou gastar o que não tenho enchendo a cara. Por que pagar para entrar!? Questionava-se Jorge, numa hermenêutica caótica.
Todavia, no fatídico 15 de novembro de um ano que todos preferem esquecer, os amigos de Jorge da faculdade,- uma turma de professores moderninhos, desse tipo que apresenta uma sessão dos filmes de Glauber Rocha e Pasolini para serem debatidos em sala de aula-, decidiram levá-lo para um Night Club. Night Club, vulgo boate de strip tease mesmo. Na entrada do estabelecimento de entretenimento e prazeres era cobrado 150 reais de couvert artístico.Jorge não gostou nada da idéia. Só as doses de uísque que pretendia tomar já lhe custariam os olhos da cara.Mais 150 reais de couvert artístico!?Para ele isso estava fora de cogitação. Entretanto, seus colegas sabiam que Jorge, figura peculiar e idiossincrática, precisava desta noite de balbúrdia e sacanagem na sua vida.Para prevenir qualquer negativa, pagaram o couvert e empurraram Jorge para dentro do Night Club, antes que houvesse alguma reação do mesmo.Chegando à boate, Jorge ficou embasbacado. Garçonetes patinadoras passeavam por entre as mesas com shortinhos e seios de fora. De minuto em minuto um novo e mais pirotécnico show de striptease. Jorge não era dado à voluptuosidades muito menos a contatos físicos, mas gostava de ver. A boate era uma grande vitrine, vitrine das práticas mais heterodoxas da história da sexualidade humana.Jorge pediu um scotch duplo e saiu em busca de mais novidades no lugar. Num quarto escuro, televisões de plasma com 355 mil polegadas passavam toda sorte de filmes eróticos - dos mais undergrounds até os europeus pseudo-sofisticados, daqueles com tomadas cinzentas em lugares bucólicos.No mezanino, homens e mulheres estavam em polvorosa. Jorge pediu mais um scotch duplo no bar e perguntou ao barman o porquê do frenesi. O homem explicou que logo mais entraria em cena Xana, a domadora de homens.O garçom recomendou o show e disse que era o mais aguardado da semana. Havia até fila de espera para ver Xana. Todavia, era cobrado um couvert extra, haja vista o renome internacional da estrela da noite. Jorge sentiu naquele instante que era um homem de sorte. Nunca havia freqüentado aquele lugar e já estava ali, na iminência de assistir ao espetáculo mais aguardado daquele paraíso.Jorge pediu mais um scotch duplo, sacou a carteira do bolso, pagou o couvert extra e esqueceu de tudo. Nem lembrava mais dos amigos da faculdade que o acompanhava, das implicâncias com o couvert e até mesmo dos 3 mandamentos da boa conduta e sucesso.
Naquela altura, já estava de graça. A classe, a elegância e o glamour sucumbiram aos atributos de Xana. Sim,sim.Xana havia subido ao palco. Completamente nua, carregava duas tochas incendiadas e uma garrafa de querosene. Num dado momento, em meio a uma dança meio sensual, meio ritual, Xana começou a cuspir fogo. Cuspiu tão longe que atingiu Jorge. O fogo entrou em combustão com o copo de scotch duplo que Jorge segurava. Jorge sentiu um calor incomensurável subir-lhe pelas mais escusas partes do corpo. As pessoas aplaudiam e Xana cuspia mais e mais fogo na direção do público. Uns jogavam-se em frente às chamas. Outros engrossavam o coro da catarse coletiva. Enquanto virava churrasquinho, Jorge gritava alucinadamente: “ Quero mais!”

Nenhum comentário: