domingo, 31 de agosto de 2008

Cotoco: pedaço de gente, pessoa sem arestas, bloco.

Na sala escura, um pôster do rei Roberto Carlos (daquela fase do permanente no cabelo e do brinco de pena). Sentado na poltrona vermelha, um homem de meia-idade, confortável em seu ostracismo. Vaidoso, faz mechas loiras nos cabelos quinzenalmente. Nos fundos do apartamento de quarto e sala, duas gaiolas de passarinho. A casa não é muito asseada. Pequenos ratos e baratas dividem o espaço com caixas abarrotadas de objetos antigos. Notadamente, canários e baratas são o passatempo predileto do ermitão. Ele nutre um prazer inconteste em esmagar famílias e famílias destes pequenos animais cascudos e voadores. As onomatopéias decorrentes do esmagamento são um deleite, mas o grande prêmio é ouvir o habitual e genuíno crack e ver a gosma interna das baratas grudada na sola do chinelo.
Recém-chegado de outras bandas, um clã de baratinhas observa estarrecido a rotina sui generis do homem. No intento de adaptar-se ao ambiente hostil e escapar desse rito sacrificial, a família refugia-se embaixo de um tapete empoeirado, perto das caixas repletas de coisas velhas que congestionam a sala.
Num esforço desesperado de desvendar as idas e vindas no espaço, a baratinha mais velha (e responsável pela segurança das demais) espia os hábitos do homem como um sentinela. Percebe que a cada instante o homem perde um pedaço do corpo. Num dia, o nariz aquilino, noutro, os dedos dos pés. Horas depois, vão-se os dedos da mão e os anéis. Em poucos dias, o homem, outrora garboso e excêntrico, torna-se um cotoco de gente. Nada de braços e pernas. Somente o tronco apoiando os órgãos vitais.
O homem passava seus dias deitado no chão da cozinha, onde com algum esforço conseguia alimentar-se. A baratinha-chefe enxerga neste processo de mutilação diária, indolor e estranha a salvação de seu grupo, que desde a chegada ao apartamento do homem estava recluso embaixo do tapete, sem poder trazer à tona seus instintos baratísticos. Após a realização de uma plenária com todo o clã, decidem democraticamente - e por unanimidade -, que a turba deveria emergir. Invadir o espaço do apartamento, subir em prateleiras, armários, correr embaixo e atrás de móveis e eletrodomésticos, desbravar todos os cantos e ralos em busca de migalhas e segurança. Não tardou e o clã das baratinhas tomou todo o lugar.
Logo, o ambiente em torno do homem ficou decrépito. Moscas pairavam sobre a imundície. Os restos de comida que homem devorava eram partilhadas com ratos e formigas. As baratinhas estavam em toda parte, com uma altivez poucas vezes vista em baratas. Num ato desesperado, o homem tenta dar cabo à própria vida. Não podia conceber tal situação. Dividir a pouca comida que lhe restava com um monte de baratas!Nunca!Seria humilhação demais. Todavia, não poderia usar seus braços e pernas para cometer suicídio. Em meio à sua desolação e impotência, num lampejo de lucidez, um lusco-fusco de dignidade toma seus pensamentos. O homem joga o peso do corpo para frente e como um botijão de gás rola com toda força ao encontro das baratinhas. Atônitas e impassíveis, as baratinhas assistem a um acontecimento improvável: um cotoco humano, somente tronco e cabeça, avança ferozmente na direção do grupo. Ao esmagar as baratinhas como um rolo compressor, o homem solta uma gargalhada, baba e se decompõe, quadro a quadro, se espatifando contra a parede. A gosma interna do homem, misto de vísceras e fluídos corporais, escorre pelo chão da casa e o homem sussurra com um ar de riso: ‘Pronto!Já terminei!’

Um comentário:

Caio Sotero disse...

Muito boa a arrumação do teu blog. Gostei da idéia e achei os contos de um ritmo muito bom. O surreal sempre fez parte de seu cotidiano. "Isso é muito surreal". Enfim, teremos a possibilidade de olharmos por uma lente curiosamente distorcida, mas não menos perspicaz.