segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Céu de estrelas

Cícero Gustavo (Cícero por causa de uma promessa feita ao Padinho Ciço) nasceu há quase 40 anos, de sete meses, em Barbalha, no sertão do Ceará. Quando pirralha, jogava bola no barro seco, era coroinha na missa, amarrava latinhas de coca-cola na traseira das toyotas dos romeiros, vestia a camisa do ICASA futebol clube (o verdão do Cariri) e adorava quando chegava junho, porque sempre tinha quermesse e a farra do pau da bandeira. Gustavo, como ele prefere, de vez em quando sente o cheiro e o gosto dessa infância sertaneja. Aos 18 anos rebelou-se. Colocou a mochila nas costas e rumou para o Recife. Alugou um apartamentinho, de quarto e sala, pendurou uns quadros e umas prateleiras, colocou um tapete bonito e começou a se sentir em casa. Terminou o curso de economia, foi trabalhar na secretaria da fazenda de terno e gravata. Ganhou algum dinheiro e foi passar as férias na Europa. Conheceu a Alemanha, a Itália, a Holanda e a Espanha. Na volta, sempre dava um jeitinho de visitar a família, que agora vivia no Juazeiro. Fazia uma prece pro seu padrinho e sentia um vazioo...Gustavo sofria.Um sofrimento dolorido, daquele que chega a latejar. Gustavo precisava de mais imanência e mais transcendência. Mescla, confusão, incerteza. Era isso que faltava. Gustavo largou tudo e foi estudar antropologia. Mas a incerteza ainda era uma sensação nova. Antes, enquanto hipotética,quimérica, tipo ideal que parecia que nunca iria se realizar, a incerteza instigava, aguçava os desejos mais recônditos. Agora ela se apresentava e Gustavo se perdia nesses dias de novidade. Enquanto a professora discutia Merleau-Ponty e Balandier, Gustavo etnografava a entrada de Isabela na sala de aula. Isabela era uma menina branquinha, gordinha e zarolhinha que sempre sentava na carteira da frente de Gustavo. Ela tinha um cabelo castanho, cor de burro quando foge, bem enroladinho. O cabelo era comprido, batia na bunda.Era muito cheio também. Essa moldura deixava o conjunto ainda mais esquisito. Branquela, pálida, com aquela coloração meio amarelo-esverdeada de quem passou uma temporada na UTI. Gorda, rechonchuda e com uma cara que mais parecia um pão bolachão. A gordura saltava nas costas, naquelas partes que o sutiã aperta. Além de taluda e fraca de feição, Isabela é meio estrábica também.Nesse caso, não tem exercício ortóptico que alinhe as duas bolotas pretas que ela tem no meio da cara. Apesar do cenário aterrador, Gustavo sentia um estranhamento freudiano em relação à Isabela. Toda vez que ela entrava na aula, atrasada, suada e esbaforida, Gustavo sentia ânsia de vômito. Enguiava por alguns segundos, até que ela se acomodasse (sempre na frente dele, que chegava com 5 minutos de antecedência e sentava na penúltima carteira, no canto esquerdo. Gustavo sempre foi deveras metódico, desde os tempos de maloqueiragens no vale do Cariri.Gustavo não lutava contra esse TOC, apenas o aceitava). Depois que Isabela posicionava seu culote gigantesco na cadeira, Gustavo não conseguia mais desviar a atenção dela. Fitava-a firmemente. Reparava em cada detalhe do corpo adiposo de Isabela. Cada peculiaridade comportamental. Com seu olhar behaviorista, Gustavo registrava o jeito que ela coçava a cabeça com o lápis, a quantidade cada vez mais crescente de caspas no cabelo embaraçado, a mania de tirar a sujeira embaixo das unhas com a ponta da caneta e o modo como ela se espreguiçava no meio da aula, dando uma gemidinha no final. Por último, Isabela se rendia ao calor incendiário da cidade e começava a preparar um coque improvisado: primeiro prendia toda a cabeleira, enroladava, puxava um pouco e dava 3 voltas em sentido anti-horário. Para arrematar, enfiava o lápis no meio do redemoinho de cabelo, para segurar o penteado. Gustavo sorria. Adorava olhar os contornos da nuca de Isabela. Não era um pescoço gordo. Analisando só o pescoço, diria que ela tinha 55kg, distribuídos em 1,70m de altura. A nuca dela tinha um caminhozinho de cabelos lisos e bem fininhos que enveredavam até a cabeleira cheia e oleosa. Gustavo descia a vista mais um pouco e ia até as costas. Isabela sempre usava umas blusas que deixavam a parte superior das costas à mostra. Ela tinha muitas sardas. Umas maiores, outras menores. Manchinhas escuras, mais claras, carnudas e até um sinal vermelho. “Uma raridade, um brinde”, pensava Gustavo toda vez que se deparava com ele. Ele gostava de contar cada sarda. Às vezes a soma final aumentava, “deve ser o sol”...Também se perdia olhando o todo, imaginando os contornos e as formas dos sinais. “Um céu de estrelas!”.
Essa movimentação tão íntima tomava muito mais de Gustavo do que Durand e Maffesoli. Todo dia o mesmo ritual. Gustavo esperava, Isabela entrava atrasada e agoniada, Gustava enguiava, Isabela sentava e Gustavo sorria. Um riso de canto de boca e só.