sábado, 18 de janeiro de 2014

Tiro certeiro

Acordo depois de uma noite conturbada. Pesadelos, sonhos e delírios me atormentaram madrugada adentro. A primeira coisa que escuto do meu namorado é que o chamei durante a noite e soltei um firme "é isso mesmo!". Não foi uma afirmação sonolenta, mas uma constatação direta e impaciente. Típico da minha rotina de professora da educação básica. O maloqueiro me interpela e solta uma piada infame em meio ao tumulto da aula. Digo que "é isso mesmo!" e pronto. Acabou. Agora é esperar até o final do mês para receber os meus dois salários mínimos de direito. Pouco menos de 1.500 reais com os descontos, líquido, não são suficientes nem para manter uma dieta balanceada. Não posso me dar ao luxo nem de comprar uns morangos no sinal de trânsito. Decadência. Mal coloco o pé para fora da cama e escuto três estrondos. Fogos ou tiros? Mais um, dois, três, quatro. Sete disparos no total. Ligo o rádio imediatamente. Toca uma música internacional romântica no dial. Me irrito. Vou pra internet e os blogues me atualizam do acontecido. Uma briga num bar. Dois morreram por arma de fogo. Um está hospitalizado. Fora ferido por uma arma branca. Provavelmente uma peixeira. Vou fazer café. Enquanto corto o pão, o café esfria. Saio para o trabalho. Ao entrar em sala de aula, não encontro um dos maloqueiros que tento sutilmente relevar todos os dias. Todo o sangue do meu corpo corre para as extremidades. A mão gela. Os pés adormecem. Minha vida mais parece um filme de Alejandro Gonzales-Iñarritu.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Verdejantes

No dia vinte de dezembro, véspera do meu aniversário, parti rumo à minha casa. A casa que partilhei durante quase trinta anos com os meus pais. Ali aprendi sobre ternura, raiva, mágoa, amor incondicional, resiliência, generosidade e um montão de coisas que se espera da relação pai-mãe-filha-filho. Além da casa, regressava à cidade que me permitiu experiências reveladoras sobre essa estranha amálgama entre o ser na alteridade e o existir. Desliguei o gás, tirei os eletrônicos da tomada, arrumei as malas e entrei no carro. Parti a 130km/h rumo ao encontro com o afeto construído em uma vida. No dia 21, tentei reunir alguns amigos em torno de uma mesa para jogar conversa fora, falar barbaridades, travar críticas densas e rir um bocado. Em poucas horas percebi que nenhum deles teria tempo para tanto. O engarrafamento, o Natal, as férias, o trabalho, os filhos, os problemas. Tudo contra todos. Dois dias depois fui chamada de " jumenta" no trânsito. Cortou meu coração. Ele nem sequer me conhecia. Para quê? Por quê? Seguiram-se quase vinte dias assim. Casa, pai, mãe, irmão, namorado e a clareza que a vida não é fácil. Enquanto essas divagações filosóficas-etílicas iam ganhando corpo, comecei a organizar minha volta ao sertão, com certa ansiedade, diga-se de passagem. Tão homeopática que confundi com resfriado, insônia e desinteria. Na estrada, com mais três amigos do trabalho, o tédio tomava conta. 630 km numa rodovia federal brasileira é só para os fortes. A cada crise no meio do caminho, quase 8 horas de viagem geram discórdias e desquites, alguém dava o tempo restante da aventura com a intenção de acalmar os ânimos: "ainda faltam 4 horas". "16:30 a gente chega" ou a clássica frase eufórica "já chegou em Bom Nome". "Já chegou em Bom Nome" significa "deixem de confusão que agora já tá perto". De repente, em meio ao asfalto fervente, reluzindo pontos brilhantes de vidro misturado com o piche, avista-se no horizonte uma comunhão de nuvens cinzentas. Alguém comenta que escureceu. Pingos tímidos começam a resvalar no pára-brisa. As gotas de chuva se desavergonham e começam a correr grossas, densas, parrudas por todos os lados. Digo que está tudo tão verde. O outro comenta que a vegetação se adensou. Devagarinho na mente e veloz na pista, sinto um desejo sinérgico dentre todos os companheiros de viagem de querer mais desse toró. Em meio a incontáveis bois, vacas, burros e cavalos mortos na beira da estrada, penso que o sertão propicia experiências sensoriais muito poéticas. O entardecer é de um conjunção de laranjas oníricos. As dimensões do meio são tão extremas que dá vontade de tocar no céu e de guardar as serras em forma de animais no bolso. A natureza é tão poderosa que só precisa de um tiquinho de água para enverdecer. Os cheiros e sons sempre intensos e perenes. Saio na rua para comprar leite e água mineral. Os gritinhos da meninada correndo na rua aplacam qualquer desespero. Agora mesmo estou sentindo o cheiro do café orgânico que comprei de um produtora local e que incensa a minha casa. É sinestesia pura. É a beleza dialética do olhar arrebatado de quem se sente em casa. Que a natureza nos escute. Por via das dúvidas, rogo a prece mais uma vez: "Dai-nos chuva em abundância, glorioso São José!"