segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Verdejantes

No dia vinte de dezembro, véspera do meu aniversário, parti rumo à minha casa. A casa que partilhei durante quase trinta anos com os meus pais. Ali aprendi sobre ternura, raiva, mágoa, amor incondicional, resiliência, generosidade e um montão de coisas que se espera da relação pai-mãe-filha-filho. Além da casa, regressava à cidade que me permitiu experiências reveladoras sobre essa estranha amálgama entre o ser na alteridade e o existir. Desliguei o gás, tirei os eletrônicos da tomada, arrumei as malas e entrei no carro. Parti a 130km/h rumo ao encontro com o afeto construído em uma vida. No dia 21, tentei reunir alguns amigos em torno de uma mesa para jogar conversa fora, falar barbaridades, travar críticas densas e rir um bocado. Em poucas horas percebi que nenhum deles teria tempo para tanto. O engarrafamento, o Natal, as férias, o trabalho, os filhos, os problemas. Tudo contra todos. Dois dias depois fui chamada de " jumenta" no trânsito. Cortou meu coração. Ele nem sequer me conhecia. Para quê? Por quê? Seguiram-se quase vinte dias assim. Casa, pai, mãe, irmão, namorado e a clareza que a vida não é fácil. Enquanto essas divagações filosóficas-etílicas iam ganhando corpo, comecei a organizar minha volta ao sertão, com certa ansiedade, diga-se de passagem. Tão homeopática que confundi com resfriado, insônia e desinteria. Na estrada, com mais três amigos do trabalho, o tédio tomava conta. 630 km numa rodovia federal brasileira é só para os fortes. A cada crise no meio do caminho, quase 8 horas de viagem geram discórdias e desquites, alguém dava o tempo restante da aventura com a intenção de acalmar os ânimos: "ainda faltam 4 horas". "16:30 a gente chega" ou a clássica frase eufórica "já chegou em Bom Nome". "Já chegou em Bom Nome" significa "deixem de confusão que agora já tá perto". De repente, em meio ao asfalto fervente, reluzindo pontos brilhantes de vidro misturado com o piche, avista-se no horizonte uma comunhão de nuvens cinzentas. Alguém comenta que escureceu. Pingos tímidos começam a resvalar no pára-brisa. As gotas de chuva se desavergonham e começam a correr grossas, densas, parrudas por todos os lados. Digo que está tudo tão verde. O outro comenta que a vegetação se adensou. Devagarinho na mente e veloz na pista, sinto um desejo sinérgico dentre todos os companheiros de viagem de querer mais desse toró. Em meio a incontáveis bois, vacas, burros e cavalos mortos na beira da estrada, penso que o sertão propicia experiências sensoriais muito poéticas. O entardecer é de um conjunção de laranjas oníricos. As dimensões do meio são tão extremas que dá vontade de tocar no céu e de guardar as serras em forma de animais no bolso. A natureza é tão poderosa que só precisa de um tiquinho de água para enverdecer. Os cheiros e sons sempre intensos e perenes. Saio na rua para comprar leite e água mineral. Os gritinhos da meninada correndo na rua aplacam qualquer desespero. Agora mesmo estou sentindo o cheiro do café orgânico que comprei de um produtora local e que incensa a minha casa. É sinestesia pura. É a beleza dialética do olhar arrebatado de quem se sente em casa. Que a natureza nos escute. Por via das dúvidas, rogo a prece mais uma vez: "Dai-nos chuva em abundância, glorioso São José!"

Um comentário:

Cecí disse...

Quando eu estava na 6º ou 5º serie, não sei bem, um professor de geografia falava da influência da Chapada da Borborema no sertão, sendo esta uma grande barreira para a formação de nuvens e consequente chuva. Eu ficava pensando com os meus colegas que a solução para a seca era tão simples! Como ninguém havia pensado em implodir aquela chapada?!! Era até mais fácil do que transpor o Velho Chico rsrsrs. Logo depois, cheguei à lição em que dizia que a caatinga era um bioma riquíssimo, único, complexo e bastava chuvinha de nada “desarvergonhar” pro verde desabrochar e quebrar o costumeiro tom pastel.
“A natureza é tão poderosa que só precisa de um tiquinho de água para enverdecer”, isso mesmo! Não sei porquê lembrei disso agora... deve ser aquele negócio de palavra que puxar palavra... Estou relendo “Grande Sertão: Veredas” e as imagens poéticas inundam tudo por aqui dentro de mim. Fico lembrando daquela estrada sem fim de quando eu ia ao Juazeiro visitar minha prima. Neste road movie era seca de um lado da estrada, seca doutro lado... promessa de felicidade pro agricultor miúdo ao ver as construções da transposição do São Francisco. Eu via tanta tristeza! E aquele calor todo consumia tanto meu juízo, Paula! E eu só queria saber do meu centro, de voltar pra Recife, minha metrópole fedida.
Mas a gente parava sempre em Bom Nome pra comprar doce de leite... Ah! Uma vereda no meio daquilo tudo, aqueles doces! Como um lugar tão seco é tão repleto de sustança, poesia e humanidade? “Uma tristeza que até alegra”, falou Guimarães. Pensava eu quando chegava no Juazeiro ao ver a devoção firme e rude do sertanejo. Aí eu entendia tudinho quando olhava a sombra abençoada daquela árvore, da fé que impregnava os ex-votos, das velas, do Padim Ciço... O sertão é tudo isso: cheiro, som, doce de leite, solidão, poesia, dor e um pouquinho mais... e tu sabes disso mais do que eu... tá sabendo... “mulhermente”, no dizer de Manoel de Barros rsrsrs. Rezando por chuva, mesmo que ceticamente, ficas igual a todo Riobaldo. Tu moras no sertão e o sertão mora em tu.