quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Varanda

Fazia um calor do cão e só queria ficar em casa. Ligar o ventilador, o umidificador de ar e relaxar ouvindo King Crimson. São 15h de um sábado e preciso buscar o meu marido na rodoviária. Chego 15h10 e sento num banco de madeira. Feio, velho e sujo. O calor começa a me consumir. Adentra em cada poro. Sufoca.Tortura. O ar entra fervente pelas minhas narinas. O coração acelera e uma aflição repentina toma o meu corpo. Vou no botequinho da esquina e compro uma água mineral. Volto ao banco e sento. Me perco olhando para uma hospedaria de fronte à rodoviária. As janelas estão abertas e o bar do térreo lotado. Vejo uma rede decrépita, carcomida pelo tempo no relance de um dos quartos. Penso nos tipos que dormem ali. Me pergunto se todas as vidas são tão vertiginosas e caóticas quanto a minha. Será que todo mundo acorda tão desesperado quanto eu? Viver assim beira o insuportável. Digo mais: é inaceitável. Agora mesmo penso que preciso de uma folga. Quem sabe colocar rédeas nesse dia-a-dia insano. Outras vezes penso que já sou uma quase balzaca e que já está tudo feito. É o insondável e o imutável tomando os meus dias. Quando a gente torna a arte um vício, uma compulsão, só resta explorar os subterrâneos. Cavucar, cascavilhar. Buscar o que está abaixo da superfície e que não é tão profundo à ponto de ser aplacado com psicanálise. O pior é que, chegando neste platô, não dá mais para regressar à superfície. Acabou. Penso que um antropólogo ficaria feliz aqui nessa varanda improvisada. A fauna abissal e subumana do meu entorno é farto material de análise. Material humano, é claro. Todos as pessoas que me rodeavam naquela rodoviária singela e torpe são gente que transbordou fronteiras, gente acostumada a viver no limite. No limite de suas condições materiais e no limite do existir. Errantes da colonização.Retirantes do capitalismo grotesco. A maioria não tem emprego fixo e subverte todas as leis e possibilidades do aceitável. Está sentada ali nas imediações uma família de albinos. São dois albinos adultos e três crianças. Me dá um pouco de aflição acompanhá-los. A pele leitosa desse povo não aguenta o sol penetrante daqui. As crianças têm os braços e rostos cobertos de feridas úmidas. Meninos e meninas perebentos. A adaptação sobre a qual versava Euclides da Cunha, naquela metáfora icônica sobre o sertanejo ser antes de tudo um forte não fazia sentido algum para essa família. Pareciam ser todos muito frágeis. Transparentes mas marcados pelo estigma da miséria. Torço para que estejam indo embora. Para todo o sempre. Volto a vista novamente para a hospedaria. Não vejo os hóspedes, apenas uma mulher que sai dali de dentro com um vestido de algodão, com uma estampa bem popular, todo esvoaçante. Meio coroa, mas com as carnes ainda duras. Grita algo que não entendo com um casal de bêbados que conversava na calçada. Volta para o bar e sai com um cigarro aceso que entrega para a mulher embriagada. O que parecia ser uma tensão, era puro afeto. Solidariedade humanista. Achei bonito. O casal segue andando em direção à rodoviária. Entram e sentam-se perto de mim. Não consigo tirar minha atenção deles. A mulher não tinha um dente sequer visível na boca. Assobiava ao invés de falar. O homem grunhia em réplica. Debatiam assim como eu e meu marido, quando discutimos os referenciais teóricos de nossas teses de doutorado. Ela segurava o cigarro com certo charme e cruzava as pernas sensualmente. Pernas grossas, roliças. Era impositiva e dominante na relação. Uma feminista. O homem parecia ser compreensivo e doce. Gesticulava com virilidade e segurança. Sentia nele um esforço em refletir e ceder naquele diálogo.Antes de chegarem próximo de um consenso, levantaram-se e perderam-se entre os raios de sol escaldantes do sertão. Senti uma fisgada no peito. Seguiram rumo ao infinito.

2 comentários:

Cecí disse...

Eitcha!! O Cirquinho de volta!Engraçado é como nossas experiências acabam se incorporando a nossa escrita! Que obvio isso que to falando, mas não deixa de ser interessante, pois os acontecimentos, nosso olhar, tudo a nossa volta se adensa tanto! E isso não tem a ver com perda da leveza na escrita, mas com uma linda maturidade e sensibilidade humana que vai se construindo nesse cadinho louco que somos nós, seres infensos ao mundo, graças aos deuses! É muito Deleuze na veia rsrsrs Bem lembrado Mil Platôs!!! Tava lembrando daquela personagem que topava o Louboutin falsie dela numa mala qd estava pronta pra fazer uma viagem rsrsrs Tem leveza e profundidade nisso tudo! Sem falar no humor, neh?! Legal demais esse texto de uma moça, quase afilhada de Balzac, casada, menina, mulher, feminista e cheia de vontade de viver! Um cheiro!!! Obs. Meu teclado tah quebrado, alguns acentos nao foram possiveis.

Paula Santana disse...

Cecília, que bom reencontrá-la aqui. Essa escolha, em transfigurar a experiência cotidiana por meio da ficção, está intimamente relacionada com o que eu leio. Meus escritores prediletos fazem isso com muita doçura e certa precisão. Com o tempo, fui atentando que esse é um exercício fundamental para uma acadêmica como eu. É um refresco para as minhas tensões praxiológicas!hahaha E o melhor e maior resultado disso é ver a minha escrita acadêmica ser muito mais literária do que o contrário. Já ouvi até alguns rumores sobre preocupações com o futuro do meu doutorado. Isso me toma de orgulho e alegria! Hahah Um cheiro e, mais uma vez, obrigada pela leitura crítica tão atenta e cuidadosa. Aprendo um bocado contigo.